segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014


Despertar do Self

O irmão mais velho da parábola daquele que se pode chamar como o pai misericordioso, é o protótipo do ego desconcertante.
Enquanto estava a sós com o pai, parecia amá-lo, respeitando-o e obedecendo-o. No entanto, após a volta do irmão de quem se encontrava livre, magoou-se, revelou-se, apresentando o outro eu, aquele chamado de “demônio interno”  amoral e indiferente. Nem lembrou-se de saber de como retornou o irmão. Se estava feliz ou não, concluindo que,  com certeza, se encontrava na miséria, pois do contrário não estaria de volta. Estaria só ou consorciado, com filhos ou perseguido?
Nada disso lhe ocorreu, senão o lugar dispensado à mágoa por haver sido colocado de lado, nem sequer consultado para o banquete que havia sido oferecido ao outro.
Ficar distante do perigo, protegido dentro do lar, garantido pela proteção do pai é uma atitude bastante cômoda e protegida dos desafios.
No presente estudo, bastaria ao filho mais velho aguardar o desencarne do pai, se apropriar de todos os bens e libertar-se da submissão, sendo convidado aos enfrentamentos que antes o genitor resolvia.
Esse comportamento é psicologicamente infantil, porque a existência humana é construída de forma a propiciar crescimento emocional, destemor e renovação constantes. Quem não se renova de dentro para fora, não consegue o desenvolvimento do self, (o ser essencial) sempre envolvido pela sombra, deixando que tudo ocorra  ao acaso.
Existem muitos desafios no processo criativo do ser espiritual que busca o numinoso, a vitória sobre a ignorância e o demônio do mal interno.
A imagem que ele, o irmão mais velho mantinha com relação ao pai, de um homem benigno para com ele, que  considerava ser merecedor de toda a compensação, diluiu-se, quando houve o confronto com o seu irmão, de quem se via livre, abrindo espaço para a exteriorização de que o não amava.
Havia se liberado do competidor que, na realidade, eram os seus próprios conflitos, os dois eus, um ambicioso, o outro sereno, pacífico o mais ponderado era pacífico, demoníaco o mais atrevido que naquele momento o dominava.
No seu Interior, nesses seus muitos conflitos, ele também não se amava a si mesmo, passando essa emoção em forma de suspeita para o pai e para os demais, por isto desejara festejar com amigos, atraí-los, conquistá-los, comprá-los, como acontece frequentemente...
Todo indivíduo inseguro desconfia dos demais e transfere para eles os motivos do seu temor, do seu sofrimento.  Distanciam-se, para não lhes acompanhar a vitória ou tenta conquistá-los com oferendas, não pela afeição, doam coisas que não têm valor.
E assim, o amor paterno teria que ser parcial, exclusivista, com relação a ele, com animosidade pelo desertor.
Costuma-se censurar o jovem que viajou para o país longínquo, também fugindo de si mesmo, e elogia-se o que ficou ao lado do ancião, mais por conveniência do que por fidelidade, sem uma análise mais profunda das duas atitudes.
Esta é uma visão psicológica imperfeita a respeito da realidade.
O filho fiel é o mito representativo de Abel, generoso e bom, que será sacrificado por Caim... Todavia, esse Abel gentil não amava Caim, o seu irmão mais jovem e extravagante, considerado perverso e insensível por haver abandonado o pai idoso...
Preferido pelos mitos Adão e Eva, perdeu o contato com a realidade e o seu irmão o assassinou.
Agora, o mito Abel no filho mais velho, gostaria de assassinar Caim, que se torna bom, que volta tomando-lhe o lugar, ou, parte dele, no sentimento do pai que o mantinha no Éden.
Mas o genitor, misericordioso, que não censurou o desertor e recebeu-o com alegria, também não agiu com reclamação em relação ao filho magoado.
Foi buscá-lo fora e convidou-o a entrar na festa, a participar da alegria de todos.
É comum a solidariedade na dor, mas não no júbilo, em face da inveja e da amargura.
o irmão mais velho submetia-se ao pai, mas não o amava, como fingia, porque logo o censurou, expressando sentimentos de recusa inconscientes, por nunca  haver-lhe oferecido um cabrito ao menos para que se banqueteasse com os amigos, enquanto ao insano ofereceu o melhor novilho...
O ciúme é terrível chaga do ego que expele purulência emocional.
O pai gentil e afetuoso, sensibilizado com o jovem que  retornou, pediu um manto para cobri-lo, já que o outro também o possuía, evocando a proteção e o amparo que lhe eram oferecidos.
- Criança – diz o pai ao filho que o censura – tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu; entretanto, cumpria regozijarmo-nos e alegrarmo-nos, porque este teu irmão era morto e reviveu, estava perdido e se achou.
O pai percebeu que o outro filho, o mais velho, também estava morto porque expressava amargura, encontrava-se perdido, porque não participava da sua e da alegria de todos que encontraram aquele seu irmão que era morto e reviveu, que estava perdido e se achou.
O ego encontrava o Self, despertando-o para uma futura integração, liberação da fissura na psique...
O Self do filho mais velho está envolto pela sombra ameaçadora, criminosa.
A parábola não informa qual a atitude do mais velho, em relação ao mais moço, após as informações dúlcidas e os esclarecimentos compreensíveis do seu pai.
Certamente, o eixo ego-Self se tornou mais forte, em face do amor do arquétipo primordial, sem limite, libertando-se dos mitos hostis e vingativos.
Prometeu, por exemplo, foge de Zeus, engana-o com artifícios contínuos para não morrer, até que cai na armadilha da própria existência física temporária, e Zeus recebe-o, aprisiona-o, suplicia-o num rochedo, onde foi colocado para sofrer calor, frio e uma águia fere-lhe o fígado durante o dia, que se refaz à noite, até quando os deuses intercedem por ele e a sua punição é anulada...
O filho mais velho quer fugir do pai amoroso após censurá-lo asperamente, evita olhá-lo nos olhos e receber-lhe o abraço, mas não poderá viver sempre sob as picadas da mágoa, remoendo a prisão no rochedo do desencanto, ao frio e ao calor das reflexões doentias... O Self é levado a despertar com a intercessão dos sentimentos de nobreza que se encontram no íntimo, como divina herança da sua procedência.
O irmão chegou quase descalço, sandálias rasgadas e imprestáveis. O pai providenciou imediatamente calçados novos, porque os pés são as bases importantes de sustentação do edifício fisiológico, que não se mantém em segurança quando lhe falta alicerce...
A mãe Terra oferece os recursos para o organismo e os transforma; o hálito da vida, porém, vem do Amor.
Cuidar das bases caracteriza o despertamento do Self, da responsabilidade diante da vida.
O irmão jovem iluminou o ego com a consciência de si, reconheceu o erro, renovou-se pela humilhação que o fez crescer, enquanto o mais velho liberou das estruturas profundas do inconsciente as paixões da vingança e da maldade, a Erínia mitológica encarregada de ferir Sísifo, conduzindo a pedra ao topo da montanha de onde ela escapa e rola para baixo, obrigando-o a erguê-la sem parar...
A parábola poderia ser dos dois filhos ingratos, que o amor reúne sob o mesmo manto protetor do pai, ligando-os pelo anel da família, traço de união com toda a Humanidade.
A família vem do clã primitivo que se une para a defesa da vida, do grupo animal, é um arquétipo de grande importância psicológica.
A força do animal que caça encontra-se no instinto de astúcia, no grupo famélico, na agressão automática e simultânea contra a presa.
Desestruturar a família é também desnortear-se.
A reencarnação, com a força de diluir os velhos arquétipos perturbadores e criar outros benéficos, reúne indivíduos de caráter antagônico ou em situação de vingança para resgates, ou afetuosos e bons para fortalecer a evolução e preservar o instituto doméstico.
Aqueles dois irmãos, que não eram antagônicos na aparência, viviam intimamente em oposição, faltando apenas o momento de demonstrá-lo.
A paternidade zelosa, o divino arquétipo de Zeus ou de Júpiter, ou de Apolo, ou de Yahveh, todo-poderosos, reúne-os e tenta ampará-los.
O filho jovem era leviano e desperta com o desconforto do sofrimento.
A sandália rasgada, as vestes em trapos, a cabeça raspada, a atitude genufletida diante do pai são os destroços que demonstram o insucesso, o esforço para o recomeço, o entrar novamente no ventre materno para renascer, por isso, voltou para dentro de casa.
Na realidade estava no pátio da casa de seu pai, ainda não entrara, não teve tempo nem oportunidade.
O filho mais velho era angustiado e disfarçava os sentimentos doentios.
Não quis participar da alegria do reencontro, porque isso demonstraria a sua falta de afeição, a sua contrariedade por ter que voltar a competir com o irmão vencido pelo sofrimento.
A oportunidade ameaçava passar sem ser utilizada.
Na vida humana cada momento tem seu sentido profundo, seu significado essencial, sua magia.
A infância dá início ao processo de crescimento interno do Self, porém, ele continua imaturo em qualquer período da existência humana, se não receber os estímulos para desenvolver-se, para desvelar-se em sabedoria e luz.
O primeiro filho demonstrou imaturidade psicológica – a infância.
O segundo expressou pessimismo e depressão, expressando primarismo emocional, outro estágio da infância emocional.
A terapia saudável para esses males foi o amor do pai, sua compreensão e misericórdia, sua paciência e confiança na força do seu afeto.
Com essa contribuição de fora despertou o Self dentro de cada qual dos membros da parábola, de cada criatura que se possa identificar com algum dos membros da narrativa.
A parábola poderia ser concluída, esclarecendo que o pai devotado levou o filho ressentido para dentro de casa – uma viagem interna ao encontro do Self – e o aproximou do irmão arrependido – Caim ressuscitado!
Assim sendo, olharam-se por largo e silencioso tempo de reflexão, superando distancias emocionais, culminando em demorado abraço de integração dos dois eus num Self  coletivo rico de valores e sentimentos morais entre as lágrimas que limparam as mazelas, as heranças lamentáveis do ego soberbo e primário.
Finalizado o texto: O DESPERTAR DO SELF  do livro: EM BUSCA DA VERDADE. De Divaldo Pereira Franco, ditado por Joanna de Ângelis.

Publicado em 03/02/14.

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